Lidar com o desperdício não é fácil

Chef Edson Leitte, do Gastronomia Periférica, conta ao Olhar Brasileiro como se tornou um talento da gastronomia

Em 2006, desempregado e com 22 anos, você decide sair da periferia de São Paulo rumo à Portugal. Como foi esta experiência?

Eu saí de São Paulo em 2006, em uma época em que a cidade vivia um momento conturbado. Eu e um amigo viemos para Portugal. Essa experiência de estar na Europa foi muito importante, porque embora a língua seja a mesma, a diferença cultural é gigantesca. Eu carrego essa experiência para a vida. Eu aprendi a cozinhar em Portugal, aprendi a me relacionar aqui em Portugal. A minha filha nasceu aqui. Então, para mim foi uma experiência extraordinária.

Muitas pessoas acham que a alta gastronomia é realizada com ingredientes nobres e caros. Você traz elementos simples, muitos deles, do dia-a-dia das pessoas para a alta gastronomia. Como foi a decisão de trabalhar com estes elementos?

As pessoas associam gastronomia ao grande mercado, com coisas caras, e na verdade não é isso. Na realidade, os melhores caldos franceses, os melhores consomês do Japão e de outros lugares, seja no ocidente, no oriente ou na Europa, nasceram da diversidade e a gente redescobre essa diversidade. Então, quando você não tem o que comer, você precisa ter imaginação. Na gastronomia periférica você descobre que os ingredientes não precisam ser caros para ser nobres. Então, a decisão de trabalhar com isso veio por saber que as pessoas, que muitas das vezes passam fome, são as mesmas que desperdiçam. Porque elas não sabem o que fazer com o alimento em sua totalidade.

Como lidar com o desperdício e gerar economia de modo criativo?

Lidar com o desperdício não é fácil. A gente desperdiça desde tempo, ficando horas e horas em redes sociais, fazendo coisas inúteis, até o desperdício da comida. O desperdício de comida no mundo é algo absurdo! Um terço dos alimentos produzidos são jogados no lixo. Falar de desperdício é falar de falta de planeamento. Em Portugal nós temos legislações, projetos importantíssimos para trabalhar com o desperdício e com as sobras dos restaurantes. Por exemplo, o que acontece com toda a comida de um bufê quando ela não é utilizada? Isso é um ponto a ser visto. E, aí, gerar economia de modo criativo é pegar o que iria para o lixo e redistribuir isso ou reinventar pratos bons, gostosos com coisas que as pessoas desacreditam, como a casca de melancia, a casca de banana e a casca da tangerina. Essas cascas tem um nível de nutrientes muito grande. É importante trabalhar isso. Gerar economia de modo criativo é fazer com que o dinheiro continue dentro das periferias para fortalecer a economia local. A periferia não sabe o potencial de negócios que tem e isso nos enfraquece.

Chef Edson Leitte

Como surgiu o projeto Gastronomia Periférica?

O Gastronomia Periférica surge quando volto ao Brasil em 2012 por conta de um problema de saúde. Comecei a pensar em gastronomia e no que eu poderia fazer. Então, abri as oficinas de aproveitamento total de alimentos. Comecei a fazer oficinas dentro da periferia de São Paulo, num projeto chamado ‘Viela’, para crianças que jogavam futebol e mal tinham o que comer. A gente começou por aí e surgiram outras oficinas na periferia, sem apoio, sem nada. O objetivo era levar consciência do quanto as pessoas desperdiçavam. Depois fui trabalhar com uma Organização Não Governamental chamada ‘Fundação Julita’, onde conheci a minha atual sócia no ‘Gastronomia Periférica’, a Adélia. Ela é uma das grandes responsáveis por esse projeto ser hoje uma escola de gastronomia. A gente descobriu que precisa ter algo na periferia para falar de gastronomia e então escolhemos um formato de uma escola de gastronomia para dar formações a essas pessoas. A escola de gastronomia também deu abertura para que outras coisas nascessem. Nascem o Rango, que é um serviço de catering; um aplicativo, que é o Mapeando, que mapeia a parte gastronômica das periferias do Brasil. São os comerciantes que se registam. O aplicativo reúne basicamente boas opções de comida dentro das periferias.

Em 2018 você foi jurado do concurso “Talentos da Gastronomia”, da Nespresso Brasil. A edição teve como temática os elementos simples, ingredientes brasileiros e livre de desperdícios, dando visibilidade a uma cozinha mais consciente. Como foi essa experiência?

O concurso ‘Talentos da Gastronomia’ foi importantíssimo porque foi uma parceria com uma empresa grande, de reconhecimento internacional. Em que o nosso trabalho foi reconhecido. Não tínhamos nem uma cozinha quando conhecemos a ‘Nespresso’. Acreditávamos que era possível uma escola de gastronomia na periferia e aí parte dos cachês dos chefs de cozinha, que participaram do reality show, foram doados para termos melhorias na escola e subsidiar os educadores. Isso foi muito importante! Eu fui convidado para ser um dos roteiristas de um dos episódios e ser jurado cuja temática era o aproveitamento total dos alimentos e o consumo consciente deles. Porque é fácil cozinhar quando você tem ingredientes ali a todo momento. E quando você não tem? Colocamos a gastronomia periférica em um outro patamar.

Quais são seus planos para 2019?

Nosso plano é conseguir perpetuar as nossas ações. Não adianta conseguir dinheiro para fazer algo hoje e amanhã já não ter mais. A gente precisa continuar com a escola de gastronomia, com o aplicativo, com o Rango e fazer com que as formações sejam contínuas. Porque a maior frustração na periferia é você chegar lá, fazer algo pontual, despertar a garotada e depois ir embora. Isso é frustrante e a gente não quer frustrar. Nosso desafio para 2019: fazer com que as coisas funcionem continuamente. Que as empresas nos apoiem e que faça sentido que elas estejam com a gente. Estar aqui em Portugal é uma dessas ações. É importante vir para cá, conhecer outros ares, conhecer outras ideias, afinal, foi onde tudo nasceu. Aprendi grande parte dessa formação aqui e devo muito a este país que me acolheu tão bem. A gente precisa devolver isso de alguma forma.

Jornal Olhar

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