O Cheiro do Ralo: o cinismo das lembranças sem valor

Uma das coisas que mais me chamou a atenção quando eu cheguei ao Porto pela primeira vez em 2015 foi a quantidade de antiquários. Havia absolutamente de tudo para se ver: câmeras fotográficas, livros, camafeus, relógios… tudo!

Eu, que sempre fui uma pessoa muito apegada a objetos carregados de lembranças, fiquei pensando o quanto deve ser difícil colocar à venda certos artefatos. E, pensando pelo outro lado, como deve exigir alguma frieza do comprador em tentar alcançar o menor preço por algo do seu interesse.

Dirigido por Heitor Dhalia e baseado no livro de mesmo nome, de Lourenço Mutarelli, o filme O Cheiro do Ralo tentou explorar um pouco a dinâmica confusa desse tipo de negócio. Numa mistura de drama e humor negro, o filme mostra o cinismo de Lourenço (interpretado pelo genial Selton Mello) e seus jogos psicológicos para tentar conseguir sempre o melhor negócio de seus clientes.

Enquanto compra de joias a olhos de vidro dos seus fregueses, um odor persistente vindo do ralo do seu banheiro incomoda o protagonista. E não há nada que ele faça para que o mal cheiro vá embora!

É muito interessante perceber o como as lembranças têm valores infinitamente superiores ao que conseguimos quantificar. E, apesar de, no filme, os clientes acabarem não tendo outra escolha senão aceitar esse tipo de negociação para conseguir algum dinheiro, fica sempre claro o quanto aquela é uma troca desigual.

E o ralo… ah, o ralo! Não há resposta correta para o que raios é o cheiro do bendito do ralo. Um problema de tubulação, que estressou ainda mais o já pouco estável Lourenço. Ou então o cheiro do seu próprio cinismo, que dissolve memórias em porcarias e depois às revende como objetos quaisquer.

Além de fazer rir, emocionar, refletir sobre o valor (muito além do financeiro) das memórias, O Cheiro do Ralo possui uma atuação brilhante de Selton Mello, que te faz oscilar entre o asco e a compaixão com bastante naturalidade.

Daniel Schiavoni
Jornalista

Jornal Olhar

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