O auto da Compadecida: o céu e o inferno já não são tão simples quanto antigamente

Nos meus tempos de escola, um dos primeiros livros abordados nas aulas de Literatura era o “Auto da Barca do Inferno”. A obra, um clássico do mestre Gil Vicente, mostrava o julgamento pós-morte de um grupo de pessoas de origens e classes sociais diversas.

Vicente usa o seu texto, escrito para o teatro, para fazer uma crítica social divertidíssima. Apesar de ter sido pensada com personagens do seu contexto histórico, o “Auto da Barca do Inferno” tem um humor fino e sempre atual.

A influência da sua obra transcendeu as fronteiras e as barreiras do tempo e, mais de 400 anos depois, encontrou em Paraíba um autor que usaria essa mesma temática para fazer a sua crítica.

Trata-se de “O Auto da Compadecida”, peça de teatro brasileira escrita por Ariano Suassuna. O livro, que rapidamente se tornou uma referência na literatura e no teatro brasileiro, recebeu várias adaptações televisivas e cinematográficas. Uma delas, dirigida pelo cineasta Guel Arraes, que talvez seja uma das releituras mais bonitas e divertidas.

O Auto da Compadecida conta a história dois amigos, João Grilo e Chicó, e suas malandragens para tentar sobreviver no Sertão Nordestino. Numa das suas desventuras, eles encontram com o cangaceiro Severino de Aracaju. João Grilo acaba morto e participa de um julgamento aos moldes da obra de Gil Vicente.

O filme tem sequências engraçadíssimas, como quando os dois malandros tentam convencer o padre a rezar uma missa de sétimo dia em latim para um cachorro. Noutras cenas, é difícil conter a emoção, como quando Nossa Senhora, chamada de “A Compadecida” pela devoção popular, decide dar uma segunda chance a João Grilo, ao contar sua difícil história de vida.

Ambas as obras, embora separadas por todas as barreiras que os seus períodos históricos as impõem, revelam muito mais que julgamentos divinos sobre os homens: mostram, sim, como os nossos pesos e medidas, ao nos olharmos uns aos outros, mudou.

Em “O Auto da Compadecida”, aparece o Purgatório. Esse destino, que não existia na viagem das barcas de Vicente, aparece agora em Suassuna para complicar o que antes parecia simples. É para lá que vão os que não foram santos em vida, mas que também não foram completamente maus.

Se em Gil Vicente, apenas os Cavaleiros e o Parvo é que se salvam, em “O Auto da Compadecida” todos recebem sua dose de misericórdia. É que o retrato dos seres humanos no tempo de Suassuna já não cabia em duas barcas.

É verdade que não se sabe ao certo se, depois de passar pelo purgatório, os personagens se vão salvar. Mas, se na época de Vicente alguns atos eram o suficiente para levar um homem ao inferno, o contexto em que Suassuna está inserido exige um olhar mais complexo.

Muito além de ser apenas uma excelente comédia, “O Auto da Compadecida” proporciona uma reflexão interessante sobre como as noções do certo e errado podem, muitas vezes, ir além do céu e do inferno.

Daniel Schiavoni é jornalista e mestrando em Comunicação, Arte e Cultura na Universidade do Minho

Jornal Olhar

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